STEVEN SPURRIER – O mundo do vinho perde uma lenda – O Atelier perde um admirador

STEVEN SPURRIER
O mundo do vinho perde uma legenda
O Atelier perde um admirador

Em meados de 2005, quando iniciamos as atividades lançando o primeiro vinho do Atelier, a situação não estava fácil. Todos os recursos disponíveis haviam sido investidos em tanques e equipamentos e a comunicação do lançamento de um primeiro vinho natural brasileiro de grande qualidade causava mais escárnio e ataques de ira que vendas, após as primeiras mensagens trocadas nos grupos de enófilos e confrarias da internet – nosso único canal de divulgação naquele momento. O primeiro vinho lançado era o Tormentas 2004, numa tiragem total de 141 garrafas. Boa parte dos líderes e participantes mais ativos desses grupos e confrarias eram indivíduos arrogantes que estavam descobrindo vinhos estrangeiros num momento em que a produção vinícola brasileira era desprezada sistematicamente por quem almejava a divisa de expert no assunto. Apesar de não falar-se em vinho artesanal na época – muito menos em vinho natural -, essas duas premissas não pareciam despertar grande interesse em ninguém. Se um vinho era brasileiro, só poderia ser ruim. Isso era senso comum entre as comunidades de enófilos da época.

Como os esforços de divulgação junto aos grupos de discussão da internet não surtiam efeito, mais uma safra se aproximava e a conta seguia no vermelho, marquei uma visita ao comerciante de vinhos mais antigo de Canela, tentando saber se poderia colaborar com meu projeto oferecendo o Tormentas 2004 para sua clientela. Quando cheguei ao estabelecimento, o dono, que tinha mais ares de lenhador que de sommelier, abriu a garrafa de supetão e buscou um copo. Ao cheirar o vinho, torceu o nariz e fez careta. Disse que ali costumavam beber somente “vinhaços”. Para terminar seu show, estendeu a taça à faxineira que, de quatro, esfregava o chão com um pano e um balde. Essa, por sua vez, imitou o patrão torcendo o nariz e fazendo a mesma careta. Nessa mise-en-scène o comerciante deu seu recado: meu vinho não agradava nem mesmo à sua faxineira, que só bebia “vinhaços”.

Semelhante reação de desprezo decorreu da apresentação do mesmo vinho à Associação Brasileira de Sommeliers do Rio de Janeiro, prova conduzida crítico mais alardeado da dita imprensa especializada da época, para quem enviei uma garrafa. Idem sobre a amostra enviada à Sociedade Brasileira dos Amigos do Vinho (Porto Alegre), aos cuidados de uma “wine promoter” gaúcha muito badalada naqueles tempos. O escárnio e as caretas eram a resposta quase automática dos formadores de opinião locais a um vinho brasileiro com custo (e pretensão) acima dos demais. Mas tratava-se da melhor uva cabernet-sauvignon do Brasil, cultivada no melhor vinhedo, situado na melhor região, vinificada artesanalmente por desgranagem manual dos cachos. Ademais, aquelas garrafas encerravam um sonho, e cada sonho tem seu preço.

Enfim, o preconceito contra o vinho brasileiro somado à incredulidade sobre tudo que é novo, bem como a irritação com o preço, pareciam cegar qualquer possibilidade de avaliação mais imparcial do resultado obtido naquelas garrafas. Mas eu estava certo que aquele vinho era bom e ficaria cada vez melhor com o tempo, e essa certeza não me deixava arrefecer. Sabia que os bons vinhos europeus eram caros e não via porque um vinho de nível igual ou superior ao deles devesse ser necessariamente barato pelo fato de ser brasileiro. Não me interessava ser apenas mais uma vinícola, queria elaborar vinhos especiais.

Como dominava desde jovem alguns idiomas estrangeiros (e coragem não faltava) passei a buscar avaliações das minhas primeiras garrafas junto a algumas celebridades internacionais, já que os formadores de opinião locais pareciam indiferentes – quando não hostis à minha iniciativa. Cerca de três meses após a cena com o dono da loja de vinhos em Canela, Steven Spurrier, inglês, jornalista especializado, editor da Revista Decanter e a maior legenda viva do mundo do vinho provaria o mesmo Tormentas 2004 em Londres e enviaria uma das mais elogiosas notas talvez já recebidas por um vinho brasileiro, partindo de uma celebridade internacional. Foi assim que o Atelier deu seus primeiros passos. Logo em seguida outras personalidades estrangeiras enviariam avaliações positivas, e críticos brasileiros independentes, não ligados anunciantes, vinícolas ou importadoras, não tardariam a colaborar para um prestígio e uma reputação que jamais cessaram de crescer.

Em 24.05.1976 Spurrier conduz a mais famosa degustação da História
Sua loja em Paris, anos 70
Auge da carreira
Auge da carreira
Em seus últimos tempos, Spurrier vitivinicultor em Dorset, Inglaterra

Cartas de Steven Spurrier

Londres, 31 de março de 2006

Caro senhor Danielle,

Ontem eu finalmente organizei a degustação do seu vinho. Eis as minhas notas:

TORMENTAS SECUNDO 2004

De uma fina cor rubi-carmim claro e límpido; notas sutis de pequenas frutas de bosque maduras; um pouco de fruta silvestre; fina expressão de Cabernet Sauvignon com fruta nítida e precisa no palato; evidentemente de um vinhedo jovem, mas já com personalidade própria. Totalmente Medoc em estilo, porém mais Margaux ou St-Julien do que Pauillac ou St-Estephe; fino balanço; aromas refrescantes e bela persistência.
Nota: 16/20

TORMENTAS PREMIUM 2004

De uma finíssima cor de cereja negra, ainda com a matiz violeta da juventude; mais carnudo e com mais traços do solo que o Secundo, mais no molde de Pauillac/St-Estephe; excelente profundidade e madureza; muita ameixa em passa, suculento no meio-palato e com finos taninos no final. Fruta silvestre profunda, com refinamento e persistência, e taninos bons, macios. Finíssima expressão de Cabernet Sauvignon, sem nenhum dos excessos seguidamente encontrados no Novo Mundo.
Nota: 18/20

Os vinhos foram degustados por volta das 15h, e eu os degustei novamente com um par de amigos durante o jantar, por volta das 21h. Neste momento o Secundo havia desvanecido um pouco, mas o Premium havia se aberto realmente, e estava ainda mais impressionante.

Muito obrigado pela grande oportunidade de provar esses dois excelentes vinhos.

Cordiais saudações,

Steven Spurrier
Decanter Magazine


Londres, 8 de Novembro de 2007

Caro senhor Danielle,

Eu finalmente desgustei seus vinhos hoje antes do almoço, abrindo-os cerca de uma hora antes. Aqui estão minhas notas:

MINIMUS ANIMA 2005

Fina e profunda cor rubi-aveludada, muito jovial; boa viscosidade nos lados da taça. Nariz de frutas vermelhas recém esmagadas, elegante, cheio de fruta mas sem exuberância excessiva. Maduríssimas frutas vermelhas no palato, bons taninos naturais que dão a impressão de leve uso de carvalho, final firme e fresco, balanceando com a acidez natural. Um vinho muito bem feito; com fina fruta natural e um bom senso de individualidade. Degustado sem Setembro de 2007.

TORMENTAS PREMIUM 2006

Cor de negro rubi-aveludado; evidência de gás quando recém-aberto, visual rico e luxuriante, com densas pernas  nas paredes da taça. No nariz, finas frutas de bosque maduras e concentradas, dominando cerejas negras combinadas com certa terrosidade natural. Gás evidente também no palato, mas há aqui excelente concentração de uvas muito maduras e um soberbo equilíbrio com a acidez natural. Grande densidade geral e pureza de fruta dominada por cerejas negras. Um vinho vivaz, com potência e elegância.

São ambos vinhos refinados, feitos com evidente paixão e insistência na qualidade.

Steven Spurrier
Decanter Magazine

“Não julgue antes de provar, qualidade em vinho pode ser encontrada onde você menos espera.”
                                                    Steven Spurrier

Steven Spurrier tornou-se célebre pelo evento conhecido como “O Julgamento de Paris”, que primeiro virou livro e depois filme de Hollywood. Dono de uma loja de vinhos na capital francesa em meados dos anos 70, descobriu os vinhos da Califórnia num momento em que não gozavam de melhor reputação que os brasileiros quando o Atelier iniciou a atividade, trinta anos depois. Confiante em sua percepção sobre a qualidade dos vinhos que provou nos EUA, organizou uma degustação às cegas em Paris reunindo os mais renomados críticos franceses da época. Acreditando tratar-se apenas de vinhos americanos, os jurados franceses pontuaram as amostras degustadas na ordem de suas preferências. O que não sabiam era que Spurrier havia inserido na prova, entre os californianos, alguns dos mais famosos rótulos franceses. E, para a surpresa de todos e a indignação eterna da França, os vinhos da Califórnia ganharam a preferência dos participantes do evento. O ano era 1976 e a degustação organizada por Spurrier balançaria para sempre os alicerces da hegemonia que a França vinha construindo há séculos. Um mito derrubado em apenas uma hora de degustação às cegas. A França definitivamente deixava de ser uma nação vinhateira incomparável. Desde então os vinhos do Novo Mundo passaram a ganhar atenção, a Califórnia vinícola foi catapultada para o hall da fama e nenhuma região vitivinícola do planeta permaneceu incomparável à França. Para Spurrier, às cegas tudo era comparável. Até o fim de seus dias percorreu o mundo em busca de novidades capazes de pôr em xeque a velha ordem.

Steven Spurrier acompanhou as primeiras safras dos nossos vinhos com um interesse e uma gentileza impressionantes. Emitiu notas de degustação das safras 2004, 2005 e 2006, que temos o prazer de reproduzir mais abaixo. Uma caixa contendo amostras das safras 2007 e 2008 foi extraviada pelos correios no caminho entre Canela e Londres e uma última caixa, que levamos pessoalmente, contendo o primeiro pinot noir do Atelier (Fulvia 2009), também foi desviada, jamais chegando às suas mãos. Spurrier sugeriu que deixássemos essas últimas amostras em Paris aos cuidados Mark Williamson, seu braço direito na loja dos anos 70, época do Julgamento de Paris. Jantamos no restaurante de Williamson e deixamos a caixa de Spurrier aos seus cuidados. Alguns meses depois esse último informou que Williamson teria consumido todas as amostras em sua festa de aniversário. Não consegui sequer ficar indignado, pois isso não deixava de ser uma forma de deferência: Mark Williamson era um personagem e tanto do mundo do vinho. Inglês, sócio de uma vinícola no Oregon e outra na Borgonha, proprietário do Willi’s Wine Bar e do restaurante Macéo em Paris, blogueiro, enfim, uma grande figura do contexto. Ademais, poucas semanas após voltarmos para o Brasil, Williamson publica um artigo bombástico em que aparece provando uma de nossas garrafas com um grupo de sommelières americanas. No texto declara que, a julgar pelo vinho que tinham provado, “Marco era responsável por colocar mais uma nação no hall dos produtores de grandes vinhos”.

Mark Williamson prova nosso vinho com sommelières americanas. Paris, 2010

Somando-se aos incidentes que impediram que várias amostras chegassem às mãos de Spurrier, a demanda por nossos vinhos aumentava consideravelmente, e, com ela, todas as implicações e compromissos decorrentes da repercussão em alta, impedindo que eu me dedicasse aos contatos no exterior e envio de amostras para a Europa como nos primeiros tempos. Para complicar ainda mais o quadro, neste ínterim iniciou-se a construção da nova vinícola, demandando dedicação à obra em tempo integral. E assim, os últimos anos se passaram num piscar de olhos, com a parte comercial absorvendo quase todo o tempo numa roda viva que não parou até hoje, momento em que lhes deito essas linhas. Uma vinícola pequena exige dedicação dos donos em tempo integral, e a transição entre o controle familiar e a contratação de colaboradores para cargos de chefia é lenta.

Meu último e-mail a Steven Spurrier data de 28 julho de 2019, dez anos após a frequente troca de correspondências dos primórdios. Como de costume ele respondeu rápido, com a gentileza e atenção de sempre, mostrando máximo interesse em conhecer nossos pinots. Mas mais uma vez me deixei arrastar pelos problemas de rotina e terminei não enviando as amostras para a Inglaterra. Fui negligente, e o tempo não perdoa a negligência.  Nossa troca de e-mails de julho de 2019 seria a última. Steven nos deixou em março de 2021 sem jamais ter provado um único pinot noir do Atelier.  O crítico de vinhos mais famoso do mundo, a lenda, o gentleman britânico de origem nobre que, com impressionante humildade, havia degustado, avaliado e incentivado nossos primeiros resultados nos deixava sem ter provado os vinhos que mais prestígio alcançaram na história do Atelier. Ele que, mais que ninguém, conhecia a dificuldade de produzir grandes pinots fora da França. A julgar pela homenagem que recebemos na Holanda em janeiro de 2017, Steven, sem dúvida, ficaria também impressionado com o potencial do Rio Grande do Sul para a produção de pinots noirs singulares no contexto mundial. Mas esse grande amigo do Atelier abandonou as taças antes do tempo. Jamais pensei que pudesse nos deixar tão cedo, tal a paixão e entusiasmo que emanavam de seu ser. A vida é feita de encontros e desencontros, essa perda me fez lembrar a importância de viver o momento presente com máxima intensidade,  focando no que realmente conta. Só quando pesquisei meus e-mails para redigir este artigo sobre a última comunicação com Steven me dei conta de não ter retomado o contato em setembro, de não ter enviado as amostras, de ter perdido a oportunidade de conhecer os vinhos da Bride Valley em tempo de enviar minha humilde crítica àquele que foi o mais célebre dos críticos. 

Onde quer que estejas receba minha eterna gratidão, Sir Steven Spurrier.

 

                                                                   Marco Danielle
                                                           Setembro de 2022

(…)
Our moment is swift, like ships adrift,
We’re swept apart too soon
I feel wherever I go
That tomorrow is near, tomorrow is here
We’re late darling, we’re late,
The curtain descends, ev’rything ends
Too soon, too soon,
Time is so old and love so brief,
Love is pure gold and time a thief
Speak Low
(Billie Holiday)

 

O último e-mail de Steven Spurrier

30/07/2019

Caro Marco,

Que bom receber notícias tuas após tanto tempo, fico muito satisfeito ao ver que alcançaste o reconhecimento que já era evidente desde os teus primeiros vinhos.

Acabo de retornar da Conferência Internacional do Pinot Noir em McMinnville Oregon, assim eu conheci uma grande quantidade de pinots noirs de lá. Eu estaria ainda mais interessado em provar os teus. Tens um importador no Reino Unido?

Estarei saindo de férias em breve, mas vou assistir aos videos com interesse quando estiver fora e talvez possamos retomar o contato em setembro.

Depois que nos conhecemos plantei um vinhedo na fazenda da minha esposa ao sul de Dorset, para produzir Vinho Espumante Inglês, e no último ano a safra foi tão boa que fizemos algo de Chardonnay e Pinot Noir tranquilos. Podemos trocar algumas garrafas. Dá uma olhada em nosso website www.bridevalleyvineyard.com

Com minhas melhores saudações,

Steven.