MANUAL PRÁTICO DA BOA VIDA

ARTIGO NA VEJA:
O DESPERTAR DE UM NOVO CAPÍTULO
NA HISTÓRIA DO VINHO BRASILEIRO

No início de 2007 o músico Ed Motta foi convidado a assinar uma coluna na revista Veja entitulada "Manual Prático da Boa Vida". Seus amigos Augusto Silva e Rodrigo Machado haviam criado o site independente Notas de Degustação, um dos primeiros blogs sobre vinhos do país. Entusiasmados com nossos primeiros resultados, levaram algumas garrafas para Ed provar. Esse era o começo de nossa longa amizade com o artista connaisseur.

Sabemos que nenhum começo é fácil, em nenhuma área. Em se tratando de um meio conservador, fortemente ligado à tradição, é ainda mais difícil. E a coisa se complica quando temos um forte poder econômico por trás de marcas estrangeiras, ditando o gosto e controlando a formação de opinião em terreno fértil, onde tudo que vem do exterior parece melhor que o que é feito aqui. Nesse contexto hipnótico, viciado, durante a primeira metade dos anos 2000 o vinho artesanal ou autoral tinha pouco ou nenhum espaço no país. Até que um músico rebelde, conhecido por saber de vinho e não ter papas na língua, reverteu a ordem existente trazendo à luz, em sua coluna sobre vinhos e gastronomia, uns poucos produtores marginais que, até então, pairavam às sombras. Cerca de quatro pequenas vinícolas que, até o artigo de Ed Motta na revista Veja, tinham pouca visibilidade. O Atelier era um delas. Era início de 2007 e talvez o artigo tivesse passado despercebido numa publicação convencional sobre vinhos. Mas tratava-se da revista Veja, um dos veículos de comunicação mais poderosos do país. E as sugestões não vinham de um crítico comprado por anunciantes, mas sim de um artista famoso que não vivia do wine trading. Em um contexto liderado por críticos sustentados por vinícolas e importadoras a opinião emitida gratuitamente por um enófilo independente, artista famoso, figura popular de grande carisma, teve efeito bombástico e impulsionou fortemente o início do Atelier. As primeiras safras esgotaram-se rapidamente após o artigo na Veja, até que, em 2009, um novo divisor de águas marca um capítulo à parte na história do Atelier: o lançamento do primeiro Fulvia Pinot Noir, apresentado à crítica durante o Evento Paladar, edição comemorativa dos duzentos anos do jornal Estadão, evento em que fui um dos palestrantes convidados. Pela primeira vez no contexto do vinho brasileiro um tinto da casta pinot noir era elaborado segundo antigos métodos e tradições artesanais da Borgonha, resultando em um estilo muito clássico e muito francês. Mais uma vez Ed Motta, que considera os vinhos da Borgonha “de outro planeta” e os têm entre seus preferidos, divulga o Atelier com grande entusiasmo. Nessa altura nossos pinots já fazem grande sucesso entre os wine geeks, conquistando o seleto grupo de amantes dos vinhos da Borgonha que passam a representar, até hoje, o principal nicho de mercado do Atelier. Conhecidos como os clientes mais difíceis e exigentes, os conhecedores de borgonhas passam a incluir nossos pinots em inúmeras degustações às cegas contendo grandes rótulos borgonheses, e os resultados dessas provas atraem mais e mais clientes e admiradores do trabalho do Atelier. Inclusive entre a hermética cúpula da ABS-SP, que durante anos se mostrara reticente acerca do trabalho do vinhateiro marginal cujos vinhos são constantemente inseridos, às cegas, em painéis de Richebourgs, Vosne-Romanées, Romanées-Contis e outras grandes apelações da Borgonha. Finalmente a influente ABS-SP se renderia à qualidade dos vinhos do Atelier e organizaria uma das mais emocionantes apresentações de nosso trabalho, em 2016, seguida por outra em 2018. Paralelamente, nossa reputação no campo da pinot noir atravessaria as fronteiras e, em 2017, receberíamos uma homenagem na Holanda junto a outros quatros produtores do mundo “capazes de elaborar pinots noirs de altíssimo nível fora da França” – nas palavras da comissão organizadora do evento.

Ao longo dos anos fomos abandonando as castas mais potentes dos primórdios, como as que deram origem ao Minimus Anima 2005 que Ed elogia em sua coluna da Veja. Hoje a pinot noir é nossa uva mais importante, seguida pelas cabernet-franc, nebbiolo e gamay, castas delicadas que geram os vinhos sutis e complexos que marcaram o estilo e a identidade do Atelier.

Hoje nosso número de admiradores no mundo do vinho é incomparável ao árduo começo, uma reputação que cresce em progressão geométrica a cada caixa vendida e compartilhada entre os enófilos brasileiros. Mas no princípio éramos vistos apenas como mais um no panorama do vinho gaúcho, ou seja, um pouco mais da mesma coisa num momento em que o vinho brasileiro gozava de fraca reputação. Somos gratos a enófilos como Ed Motta, dotados da experiência necessária para perceber a qualidade que estávamos oferecendo e a coragem necessária para divulgá-la ao imenso público da revista Veja. Ele não temia parecer simplório frente aos wine snobs ao aclamar um vinho brasileiro enquanto a maioria dos “formadores de opinião” preferia elogiar vinhos estrangeiros – porque soava mais chique e exclusivo. Ed foi um visionário que enalteceu a qualidade de um produto local na contracorrente de todas as tendências, antecipando o sucesso de um projeto cujo prestígio jamais cessou de  crescer. Hoje nossos vinhos alcançaram respeito nacional e internacional e tudo ficou mais fácil. Mas no duro começo, quando éramos desconhecidos, o artigo de Ed Motta na revista Veja foi decisivo. Ed teve a coragem de aclamar conteúdos enquanto a maioria da crítica aclamava rótulos.

O link para a versão digital do artigo na Veja não está mais disponível. Felizmente havíamos salvo o conteúdo e arquivado um resumo do texto na parte referente ao Atelier.

                                                                                                      Marco Danielle
                                                                                                   
  Outubro de 2022

Revista Veja
Sexta-feira, 5 de janeiro de 2007
MANUAL PRÁTICO DA BOA VIDA
por Ed Motta

“O Minimus Anima 2005 é o brasileiro de mais personalidade que já provei”

No boom do interesse por vinhos nesses últimos anos no Brasil, a maioria dos consumidores têm condescendência com muita bobagem do Chile ou Argentina, e pouca paciência em experimentar e procurar vinhos locais. O diretor Jonathan Nossiter, do documentário Mondovino, havia me alertado para a qualidade dos vinhos brasileiros num almoço da chef Roberta Sudbrack, onde ele assina a carta de vinhos. Outros incentivadores foram meus amigos que desenvolvem o site Notas de Degustação, que mostraram o vinho Minimus Anima, da vinícola Tormentas. Minha curiosidade pelos vinhos brasileiros, então, se multiplicou depois de conhecer um produto com tanta personalidade feito no Brasil. Na ocasião em que Marcos Mikulis, do Hotel Emiliano, organizou comigo uma degustação de vinhos nacionais sugeridos por Nossiter e o Notas de Degustação, convidei o mestre jedi Manoel Beato. 
(…)

Fiquei muito impressionado com todos os vinhos que degustamos e me tornei um admirador desses pequenos produtores brasileiros.
(…)
A vinícola Tormentas comandada pelo artista-vinhateiro Marco Danielle foi o motivo que impulsionou essa degustação. O pequeno livro sobre o Tormentas esclarece com grande eloqüência e honestidade as jóias de artesão que Danielle extrai do terroir de Encruzilhada do Sul, Rio Grande do Sul. As garrafas têm textos inteligentes na maneira de descrever o vinho. Degustamos dois vinhos. O primeiro foi o Tormentas Premium Grande Caldo Cabernet-Sauvignon 2004, de apenas 141 garrafas (wow!), e que foi elogiado pelo crítico Steven Spurrier – de uma das melhores revistas de vinhos, a Decanter inglesa (os ingleses sabem das coisas e sempre antes da maioria). Mas meu favorito foi o Minimus Anima 2005 (1.400 garrafas), um blend das uvas Cabernet-Sauvignon e Alicante Bouschet, o tinto brasileiro de maior personalidade que já degustei. No nariz, rara elegância, com uma nota salgada e apimentada que lembra os vinhos do Rhône e Languedoc na França. Tem mais expressão do que muitos vinhos do Novo Mundo entupidos de madeira e cheios de “truques milagrosos” para melhoria da fruta. Vinho delicioso agora mas também com potencial de guarda.

Ed Motta