Vinhos

NOTA DO VINHATEIRO
Este vinho tem, para nós, um peso mais afetivo que enológico. Não pode e não deve ser comparado com nosso Gamay Cru 2023, proveniente de um vinhedo relativamente jovem. Gamay Velhas Vinhas 2023 é fruto do vinhedo mais antigo do Brasil (ainda produtivo). O vinhedo foi plantado em 1976 (ano do famoso Julgamento de Paris) pela empresa americana Almadén, na onda de um grande entusiasmo com o potencial vitivinícola de algumas regiões do Novo Mundo. Mas não foi por acaso que os norte-americanos escolheram Bagé (e logo depois sua vizinha Santana do Livramento), na Campanha Gaúcha, como uma das melhores zonas do mundo para uma vitivinicultura de qualidade. Essa escolha partiu de estudos realizados em 1972, numa joint venture entre as universidades de Davis (Califórnia) e Santa Maria (Rio Grande do Sul). Em 1973 a empresa americana construiu uma planta de vinificação em Santana do Livramento e em 1974 teve início a implantação do vinhedo com mudas importadas da Califórnia. O Gamay Velhas Vinhas 2023 que temos o prazer e a honra de poder apresentar é proveniente da última parcela plantada durante a construção do vinhedo, datando de 1980. Quando este Gamay Velhas Vinhas pingar em sua taça, portanto, pense nos 45 anos que separam o plantio dessas mudas do vinho que ora está no copo. Quantas transformações o mundo viveu de ela para cá, enquanto essas videiras engrossavam seus troncos em silêncio, década após década, transformando-se em pequenas árvores e cravando suas raízes cada vez mais fundo em busca de água, na terra seca e arenosa de Livramento. Como vinhateiro e como brasileiro é impossível restar indiferente frente a essa história. Muitos de nós éramos crianças ou sequer tínhamos nascido quando pesquisadores do outro lado do mundo apontavam a Campanha Gaúcha como uma das melhores regiões do hemisfério sul para vinhos de qualidade. Isso nos ensina o quanto devemos às gerações que vieram antes, pois quando o assunto é vinho nada acontece imediatamente, tudo é fruto de muitas décadas de erros e acertos, o caminho que hoje trilhamos foi aberto por nossos antepassados com muito suor e com muito trabalho. Gamay Velhas Vinhas 2023 é um vinho movido por emoção e um forte sentimento de gratidão pelos pioneiros da vitivinicultura no Brasil. O vinhedo da Almadén em Livramento é o mais antigo do Brasil ainda produzindo, o primeiro em espaldeiras, o primeiro em gobelet e o maior do país em extensão. Agradecemos aos atuais proprietários a oportunidade de adquirir essas uvas de grande significado simbólico para nós, podendo transformá-las em vinho da forma mais natural possível, tentando interpretar, de modo sincero, o que esse velho vinhedo nos tem a dizer. Ao provar nosso Gamay Velhas Vinhas 2023, pela primeira vez esquecemos o compromisso com a forma, com a estética. Com quase meio século de vida, o vinhedo mais antigo do Brasil já perdeu boa parte de suas forças, é um ancião que hoje se move com certa dificuldade, de bengala, mas que segue entregando seus frutos com dignidade. O vigor de sua seiva já não é o mesmo e sentimos essa fragilidade no vinho resultante. Não devemos esperar que este vinho expresse a alma de um gamay em toda sua exuberância e tipicidade, assim como não esperamos que um velho ancião demonstre virilidade. Despojados dessa expectativa de casta, preparemos o palato para o gosto da História, puramente, afinemos todos os sensores para este sussurro do tempo. É impressionante que possam emergir sensações novas de uma trilha que nos parece tão batida. Gamay Velhas Vinhas 2023 é um vinho que nos resulta difícil de descrever, tamanha a diferença de tudo que já fizemos. Poderia ser confundido com um pinot noir, embora seus aromas não remetam a um, nem ao outro. É um vinho complexo e delicado, cujo bouquet lembra uma frágil trama de renda fina, mais composta por rosas evanescendo que por frutas vivas. Extraímos bastante para captar-lhe a alma, disso resultou um leve toque amargo no fim de boca (sim, o amargo faz parte das uvas!). Dizem que as lágrimas são amargas, talvez essa nota seja a lágrima de um vinhedo que se despede, após tantos sóis e tantas luas.